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17 de Maio de 2024
  • 2º Grau
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Supremo Tribunal Federal STF - ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ADPF 600 PR - PARANÁ XXXXX-37.2019.1.00.0000

Supremo Tribunal Federal
há 4 anos

Detalhes

Processo

Partes

Publicação

Julgamento

Relator

Min. ROBERTO BARROSO
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Ementa

Decisão

Direito à educação. Medida cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lei municipal que veda o ensino sobre gênero, bem como a utilização do conceito nas escolas. Deferimento da liminar. 1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional ( CF/88, art. 22, XXIV), bem como à competência deste mesmo ente para estabelecer normas gerais em matéria de educação ( CF/88, art. 24, IX). Inobservância dos limites da competência normativa suplementar municipal ( CF/88, art. 30, II). 2. Supressão de domínio do saber do universo escolar. Desrespeito ao direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Dever do Estado de assegurar um ensino plural, que prepare os indivíduos para a vida em sociedade. Violação à liberdade de ensinar e de aprender ( CF/88, arts. 205, art. 206, II, III, V, e art. 214). 3. Comprometimento do papel transformador da educação. Violação do direito de todos os indivíduos à igual consideração e respeito e perpetuação de estigmas ( CF/88, art. , III, e art. ). 4. Desrespeito ao princípio da proteção integral. Importância da educação para crianças, adolescentes e jovens, indivíduos especialmente vulneráveis, que podem desenvolver identidades de gênero divergentes do padrão culturalmente naturalizado. Dever do estado de mantê-los a salvo de toda forma de discriminação e opressão. ( CF/88, art. 227). 5. Plausibilidade do direito alegado e perigo na demora demonstrados. Cautelar deferida. Decisão: 1. Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de medida cautelar, proposta, originalmente, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE e pela Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros e Intersexuais – ANAJUDH LGBTI, em face da Emenda à Lei Orgânica n. 55, de 14 de setembro de 2018, que altera o artigo 165-A da Lei Fundamental do município de Londrina, Estado do Paraná, para proibir a adoção de conteúdos que adotem a “ideologia de gênero” nos ambientes escolares. Confira-se o teor do dispositivo questionado: Art. 1º A Lei Orgânica do Município de Londrina passa vigorar acrescida do artigo 165-A, com a seguinte redação: “Art. 165-A. Ficam vedadas em todas as dependências das instituições da Rede Municipal de Ensino a adoção, divulgação, realização ou organização de políticas de ensino, currículo escolar, disciplina obrigatória, complementar ou facultativa, ou ainda atividades culturais que tendam a aplicar a ideologia de gênero e/ou o conceito de gênero estipulado pelos Princípios de Yogyakarta. Art. 2º Esta Emenda entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. 2. A Câmara Municipal de Londrina prestou informações sobre a tramitação do projeto de lei, demonstrando que, apesar de pareceres jurídicos e técnicos contrários, a proposta foi aprovada. 3. A Advocacia Geral da União manifestou-se, preliminarmente, pela ilegitimidade ativa da ANAJUDH LGBTI e, no mérito, pela procedência do pedido, diante da violação à competência legislativa da União para tratar de educação e ensino. A Procuradoria Geral da República, intimada, deixou de se manifestar. 4. A ANAJUDH LGBTI teve a sua ilegitimidade ativa decretada por não ter comprovado a sua condição de associação de classe de âmbito nacional. 5. É o relatório. Passo ao exame da cautelar. I. Esclarecimentos preliminares: os conceitos de sexo, gênero e orientação sexual 6. Para que se compreenda adequadamente o objeto da controvérsia, é importante esclarecer o significado das expressões "sexo", gênero"e “orientação sexual”. Como já tive a oportunidade de esclarecer[1], a palavra sexo, de modo geral, é utilizada para referir-se à distinção entre homens e mulheres, com base em características orgânico-biológicas, baseadas em cromossomos, genitais e órgãos reprodutivos[2]. Gênero designa o autoconceito que o indivíduo faz de si mesmo como masculino ou feminino[4]. Orientação sexual refere-se à atração afetiva e emocional de um indivíduo por determinado gênero[3]. 7. As pessoas cisgênero são aquelas que se identificam plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo e que se encontram nas fronteiras convencionais culturalmente construídas sobre o tema. As pessoas transgênero são aquelas que não se identificam plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo biológico, incluindo-se entre as últimas os transexuais, indivíduos que se reconhecem no gênero oposto a seu sexo biológico. Quanto à orientação sexual, são heterossexuais os que se atraem afetiva e sexualmente pelo gênero oposto; homossexuais, os que se atraem pelo mesmo gênero; bissexuais, os que se atraem por ambos os gêneros etc. 8. Vedar a adoção de políticas de ensino que tratem de gênero ou que utilizem tal expressão significa impedir que as escolas abordem essa temática, que esclareçam tais diferenças e que orientem seus alunos a respeito do assunto, ainda que a diversidade de identidades de gênero seja um fato da vida, um dado presente na sociedade que integram e com o qual terão, portanto, de lidar. 9. Esclarecidos tais pontos, o exame do caso impõe que se examinem as seguintes questões: 1. Os municípios detêm competência para legislar sobre políticas de ensino com o alcance aqui examinado? 2. É possível suprimir conteúdos sobre gênero da educação escolar, à luz dos mandamentos constitucionais que tratam do direito à educação? 3. Tal supressão é compatível com o direito à igualdade e com a doutrina da proteção integral, aplicável a crianças, jovens e adolescentes? A resposta às três questões é negativa, como passo a demonstrar. II. A competência legislativa da União para dispor sobre educação ( CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX) 10. De acordo com a Constituição de 1988, compete privativamente à União dispor sobre as diretrizes e bases da educação nacional ( CF/88, art. 22, XXIV). Compete-lhe, ainda, estabelecer normas gerais sobre a matéria, a serem complementadas pelos Estados, no âmbito da sua competência normativa concorrente ( CF/88, art. 24, IX). Cabe, por fim, aos Municípios suplementar as normas federais e estaduais ( CF/88, art. 30, II). 11. Como já tive a oportunidade de explicitar[5], legislar sobre as diretrizes da educação significa dispor sobre a orientação e sobre o direcionamento que devem conduzir as ações na matéria. Tratar das bases do ensino implica, por sua vez, prever os alicerces que servem de apoio à educação, os elementos que lhe dão sustentação e coesão[6]. Ocorre que a Constituição estabelece expressamente como diretrizes para a organização da educação: a promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, do desenvolvimento humanístico do país, do pluralismo de ideias, bem como da liberdade de ensinar e de aprender ( CF/88, art. 205; art. 206, II e III; art. 214). Confira-se o teor dos pertinentes dispositivos: Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (Grifou-se)"Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] II - Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino". (Grifou-se) Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: [...] V - promoção humanística, científica e tecnológica do País. (Grifou-se) 12. A norma impugnada veda a adoção de política educacional que trate de gênero. Suprime, portanto, saber das salas de aula e do horizonte informacional de crianças e jovens, interferindo sobre as diretrizes, que, segundo a própria Constituição, devem orientar as ações em matéria de educação. Ao legislar em tais termos, o Município dispôs, portanto, sobre matéria objeto da competência privativa da União sobre a qual deveria se abster de tratar. 13. Além disso, estabeleceu norma que conflita com a Lei 9.394/1996 ( Lei de Diretrizes e Bases de Educação), editada pela União, com base no exercício de tal competência privativa, e que prevê, além da garantia dos valores constitucionais acima elencados, o respeito à liberdade, o apreço à tolerância e a vinculação entre educação e práticas sociais como princípios que devem orientar as ações educacionais (arts. 2º e 3º, II, III e IV). Veja-se o teor dessa última: Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. (Grifou-se) 14. Desse modo, sequer seria possível defender que a norma atacada decorre apenas do exercício da competência normativa suplementar por parte do Município de Londrina ( CF/88, art. 30, II). Ainda que se viesse a admitir a possibilidade do exercício de competência suplementar na matéria, seu exercício jamais poderia ensejar a produção de norma antagônica às diretrizes constantes da Lei 9.394/1996. 15. Assim, há plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, quer porque os Municípios não detêm competência legislativa, nem mesmo concorrente, para dispor sobre diretrizes do sistema educacional ( CF/88, art. 22, XXIV), quer porque, ainda que se admitisse sua competência para suplementar as normas gerais da União na matéria, a lei municipal jamais poderia conflitar com essas últimas ( CF/88, art. 30, II). III. O alcance do direito à educação 16. Como já mencionado, a educação assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela voltada a promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, bem como o desenvolvimento humanístico do país ( CF/88, arts. 205 e 214). Trata-se de educação emancipadora, fundada, por dispositivo constitucional expresso, no pluralismo de ideias, na liberdade de aprender e de ensinar, cujo propósito é o de habilitar a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão e como profissional ( CF/88, art. 206, II, III e V). 17. Tais disposições constitucionais estão alinhadas, ainda, com normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Nesse sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais[7]. 18. A proibição de tratar de conteúdos em sala de aula sem uma justificativa plausível, à toda evidência, encontra-se em conflito com tais valores. Em primeiro lugar, não se deve recusar aos alunos acesso a temas com os quais inevitavelmente travarão contato na vida em sociedade. A educação tem o propósito de prepará-los para ela. Além disso, há uma evidente relação de causa e efeito entre a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas. 19. A norma impugnada caminha na contramão de tais valores. Não tratar de gênero no âmbito do ensino não suprime essa questão da experiência humana, apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tal tema, para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que dele decorre. 20. Trata-se, portanto, de uma proibição que impõe aos educandos o desconhecimento e a ignorância sobre uma dimensão fundamental da experiência humana e que tem, ainda, por consequência, impedir que a educação desempenhe seu papel fundamental de transformação cultural, de promoção da igualdade e da própria proteção integral assegurada pela Constituição às crianças e aos jovens, como se demonstra a seguir. IV. A educação como instrumento de transformação cultural e de promoção do direito à igualdade 21. A escola é uma dimensão essencial da formação de qualquer pessoa. O locus por excelência em que se constrói a sua visão de mundo. Trata-se, portanto, de um ambiente essencial para a promoção da transformação cultural, para a construção de uma sociedade aberta à diferença, para a promoção da igualdade. A matéria não é nova e foi objeto de um dos casos mais paradigmáticos do constitucionalismo contemporâneo. Em Brown v. Board of Education, a Suprema Corte norte-americana reconheceu a inconstitucionalidade da imposição de escolas separadas para brancos e negros, ao fundamento de que as escolas são um ambiente essencial para a formação da cidadania, para promoção de valores culturais e de igualdade, e que a mera separação contribuía para a perpetuação da discriminação racial[8]. 22. Também o Tribunal Constitucional Alemão já se pronunciou sobre a função da educação nas escolas públicas e reconheceu a constitucionalidade da introdução da educação sexual no currículo do ensino fundamental. Na oportunidade, observou que a missão das escolas não é apenas a de transmitir conhecimento geral, mas sobretudo de possibilitar uma educação mais ampla e preparar o cidadão para a vida em sociedade. Esclareceu, ainda, que o comportamento sexual integra o comportamento geral, que a educação sexual é parte da formação do indivíduo e que o Estado tem o dever de oferecer aos jovens uma educação compatível com a vida contemporânea (BVerfGE 47, 46). Veja-se trecho da decisão[9]: [...]. Mesmo que existam como supra apresentado razões para crer que o lugar adequado à educação sexual individual seja o lar, deve-se, entretanto, por outro lado, também considerar que a sexualidade apresenta diversas referências sociais. O comportamento sexual é uma parte do comportamento geral. Assim, não se pode proibir ao Estado que este considere a educação sexual como importante elemento da educação total de um indivíduo jovem. Disso faz parte também proteger e alertar as crianças contra ameaças de cunho sexual. (Grifou-se) 23. Razões semelhantes àquelas invocadas nos casos acima impedem a vedação à educação sobre gênero no caso das escolas brasileiras. É importante observar, além disso, que os grupos que não se enquadram nas fronteiras tradicionais e culturalmente construídas de identidade de gênero constituem minorias marginalizadas e estigmatizadas na sociedade[10]. 24. Basta lembrar que o Brasil lidera o ranking mundial de violência contra transgêneros[11], cuja expectativa média de vida, no país, gira em torno de 30 anos, contra os quase 75 anos de vida do brasileiro médio[12]. Transexuais têm dificuldade de permanecer na escola, de se empregar e até mesmo de obter atendimento médico nos hospitais públicos[13]. 25. A transsexualidade é um fato da vida que não deixará de existir por sua negação e que independe do querer das pessoas. Privar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência; implicaria recusar-lhe um sentido essencial da autonomia, negar-lhe igual respeito e consideração com base em um critério injustificado. 26. A educação é o principal instrumento de superação da incompreensão, do preconceito e da intolerância que acompanham tais grupos ao longo das suas vidas. É o meio pelo qual se logrará superar a violência e a exclusão social de que são alvos, transformar a compreensão social e promover o respeito à diferença. Impedir a alusão aos termos gênero e orientação sexual na escola significa conferir invisibilidade a tais questões. Proibir que o assunto seja tratado no âmbito da educação implica valer-se do aparato estatal para impedir a superação da exclusão social e, portanto, para perpetuar a discriminação. Assim, também por este fundamento, de violação à igualdade e à dignidade humana, está demonstrada a plausibilidade do direito postulado. V. Educação sexual e proteção integral da criança e do adolescente 27. É importante considerar, ainda, que os alunos são seres em formação, que experimentam a sua própria sexualidade, que desenvolvem suas identidades de gênero e que elas podem ou não corresponder ao padrão cultural naturalizado. A educação sobre o assunto pode ser, assim, essencial para sua autocompreensão, para assegurar sua própria liberdade, sua autonomia, bem como para proteger o estudante contra a discriminação. 28. Nessa linha, deve-se ter em conta que o art. 227 da Constituição assenta o princípio da proteção integral da criança, do adolescente e dos jovens, atribuindo à família, à sociedade e ao Estado o dever de lhes assegurar todos os direitos necessários ao seu adequado desenvolvimento, entre os quais se destacam: o direito à educação, à liberdade e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Confira-se o teor do dispositivo: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Grifou-se) 29. Em virtude da condição de fragilidade e de vulnerabilidade das crianças, dos adolescentes e dos jovens, a Constituição sujeita-os a um regime especial de proteção, para que possam se estruturar como pessoas e verdadeiramente exercer a sua autonomia[14]. Educar jovens sobre gênero integra tal regime especial de proteção porque é fundamental para permitir que se desenvolvam plenamente como seres humanos. Por óbvio, tratar de tais temas não implica pretender influenciar os alunos ou praticar doutrinação sobre o assunto. Significa ajudá-los a compreender a sexualidade, as distintas identidades e protegê-los contra a discriminação e a violência. A escola não pode ser um palco de mentiras no qual não entre em cena uma parte importante da vida: a dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. E os dados mostram que aqueles e aquelas que chegaram à universidade lidam melhor com essa realidade do que todos aqueles que param nas primeiras séries do ensino formal. É fundamental investir em uma revisão do currículo e das relações escolares, privilegiando a igualdade entre os sexos e as expressões de gênero.[15] (Grifou-se) 30. Não bastasse o exposto, a escola, ao lado da família, é identificada como um dos principais espaços de discriminação e de estigmatização de crianças e jovens transexuais e homossexuais. Segundo estudos da Fundação Perseu Abramo, quando perguntadas em que situação sofreram pela primeira vez discriminação, grande parte das pessoas trans, gays e lésbicas indicou a escola como o lugar em que isso ocorreu pela primeira vez e os colegas de escola como um dos principais autores de tais atos. Veja-se: Embora a instituição heteronormativa da sequência sexo-gênero-sexualidade ocorra em diversos espaços sociais e institucionais, parece que são a escola e a família os ambientes nos quais se verificam seus momentos cruciais. A pesquisa da FPA mostra que a família e a escola figuram como os piores espaços de discriminação homofóbica. Por exemplo, pessoas identificadas como gays e lésbicas que já se sentiram discriminadas por causa de sua orientação ou preferências sexuais (59% do total), quando perguntadas em que situação sofreram pela primeira vez discriminação homofóbica, apontaram colegas de escola (13% do total dos respondentes), seguidos de familiares (11%) e pais (10%) (...). São dados que reiteram outras pesquisas realizadas em diversas capitais brasileiras durante as paradas LGBT, nas quais família e escola se revezam como o primeiro e o segundo pior espaço de discriminação homofóbica. [...]. É inegável o aporte da instituição escolar ao longo dos processos de normalização heterorreguladora dos corpos e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual. Ali, a presença da homofobia é capilar. Em distintos graus, na escola podemos encontrar homofobia no livro didático, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras. Ela aparece na hora da chamada (o furor em torno do número 24, por exemplo; mas, sobretudo, na recusa de se chamar a estudante travesti pelo seu nome social), nas brincadeiras e nas piadas inofensivas e até usadas como instrumento didático. Está nos bilhetinhos, nas carteiras, nas quadras, nas paredes dos banheiros e na dificuldade de ter acesso ao banheiro. Aflora nas salas dos professores/as, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mestres. Motiva brigas no intervalo e no final das aulas. Está nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas, moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc.[16] (Grifou-se) 31. É na escola que eventualmente alguns jovens são identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, em que o padrão cultural naturalizado é caracterizado como o comportamento normal, em que a conduta dele divergente é rotulada como comportamento anormal e na qual se naturaliza o estigma. Nesse sentido, o mero silêncio da escola na matéria, a não identificação do preconceito, a omissão em combater a ridicularização das identidades de gênero ou em ensinar o respeito à diversidade é replicadora da discriminação e contribui para a consolidação da violência às crianças homo e trans. Veja-se: Com suas bases emocionais fragilizadas, travestis e transexuais na escola têm que encontrar forças para lidar com o estigma e a discriminação sistemática e ostensiva. Expostas a sistemáticas experiências de chacota e humilhação e a contínuos processos de exclusão, segregação e guetização, são arrastadas por uma rede de exclusão que vai se fortalecendo, na ausência de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito, assim como de políticas públicas que contemplem suas necessidades básicas, como o direito de acesso aos estudos, à profissionalização e a bens e serviços de qualidade em saúde, habitação e segurança (Peres, 2004, p. 121). Na escola, quando um docente se recusa a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, está ensinando e estimulando os demais a adotarem atitudes hostis em relação a ela e à diversidade sexual. Trata-se de um dos meios mais eficazes de se traduzir a pedagogia do insulto em processos de desumanização e exclusão no seio das instituições sociais.[17] (Grifou-se) Diante dos resultados obtidos na pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, podemos afirmar que no campo da educação são ainda muitos e profundos os problemas que a homofobia causa a estudantes LGBT em todo o país. Os dados mostram que, da maneira como está estruturada e no cotidiano de suas práticas pedagógicas e de socialização, a escola é realmente um ambiente em que há discriminação pelo descumprimento das normas de gênero e da sexualidade. Normas estas ainda bastante arraigadas em concepções naturalizantes, ou melhor, biologizantes, isto é, que supõem uma oposição binária e complementar entre machos e fêmeas e, portanto, do masculino e do feminino baseada em sua constituição fisiológico-corporal e/ou genética. [18] (Grifou-se) 32. É na escola que se pode aprender que todos os seres humanos são dignos de igual respeito e consideração. O não enfrentamento do estigma e do preconceito nas escolas, principal espaço de aquisição de conhecimento e de socialização das crianças, contribui para a perpetuação de tais condutas e para a sistemática violação da autoestima e da dignidade de crianças e jovens. Não tratar de gênero na escola viola, portanto, o princípio da proteção integral assegurado pela Constituição. VI. Conclusão 33. Por todo o exposto, entendo presente a plausibilidade da inconstitucionalidade formal e material da Emenda à Lei Orgânica n. 55, de 14 de setembro de 2018, que altera o artigo 165-A da Lei Fundamental do município de Londrina, estado do Paraná. O perigo na demora é igualmente inequívoco, uma vez que a norma compromete o acesso imediato de crianças, adolescentes e jovens a conteúdos relevantes, pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral. 34. Defiro a cautelar, para suspender os efeitos da Emenda à Lei Orgânica n.º 55, de 14 de setembro de 2018, do município de Londrina. Inclua-se o feito em pauta para a apreciação da liminar pelo pleno. Publique-se. Intime-se. Brasília, 12 de dezembro de 2019. Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO Notas: [1] RE 845.779, rel. Min. Luís Roberto Barroso. [2] Sexo é, contudo, um conceito controvertido. Veja-se o que diz Jaqueline Gomes de Jesus sobre o assunto: a sociedade em que vivemos dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher. Porém, essa construção do sexo não é um fato biológico, é social (JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012. Disponível em: . [3] LANZ, Letícia. Identidade de gênero. Disponível em: . [4] BENTO, Berenice. O Que é Transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 328; JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012. Disponível em: http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/uploads/2013/04/G%C3%8ANERO-CONCEITOS-E-TERMOS.pdf>. [5] ADI 5.537, rel. Min. Luís Roberto Barroso. [6] MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997. p. 91. [7] Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992): Artigo 13. [...]. § 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz (grifou-se). Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999): Art. 13. Direito à Educação. [...]. 2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz. 3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...]. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima (grifou-se). [8] Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954). [9] SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Trad. Beatriz Hennig et al. Berlim: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 508. [10] LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3 ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 15-16. [11] Disponível em: . [12] A estimativa é do grupo Transrevolução (RJ). Disponível em: < https://anistia.org.br/29-de-janeiro-um-dia-nacional-de-luta-pela-dignidade-para-pessoas-trans/>. [13] PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 61. [14] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Saraiva, [s.a.], p. 148 e ss. [15] RAMIRES, Luiz. Homofobia na escola: o olhar de um educador social do movimento LGBT. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p 131-139. [16] PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 59-60. . [17] PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 59-60. [18] RAMIRES, Luiz. Homofobia na escola: o olhar de um educador social do movimento LGBT. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p 131-139.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/795136144

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