27 de Junho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Partes
Publicação
Julgamento
Relator
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Inteiro Teor
Supremo Tribunal Federal
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 190.453 MA RANHÃO
RELATOR : MIN. EDSON FACHIN
RECTE.(S) : FRANCISCO EVANDRO FREITAS COSTA MOURAO
ADV.(A/S) : WILLAMY ALVES DOS SANTOS
RECDO.(A/S) : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
DECISÃO: Trata-se de recurso ordinário em habeas corpus interposto em face de acórdão, proferido no Superior Tribunal de Justiça ( AgRg no HC 580.098/MA), assim ementado (eDOC 2, p. 64):
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO. ART. 89 DA LEI N. 8.666/1993. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA. ESPECIAL FIM DE AGIR. PREJUÍZO AO ERÁRIO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. O crime previsto no art. 89 da Lei de Licitações e Contratos Administrativos somente se concretiza com a constatação de que o agente atuou com a finalidade específica de, deliberadamente, causar lesão ao erário. Além disso, o entendimento jurisprudencial fixado pelos Tribunais Superiores exige a efetivação do dano, ou seja, que o prejuízo pretendido seja constatado no curso da instrução criminal. Essa exigência tem por objetivo evitar a responsabilização criminal por condutas cometidas por mero desconhecimento dos meandros da burocracia estatal, sem a intenção de locupletamento ilícito ou de dilapidação do patrimônio público.
2. Neste caso, há elementos suficientes que demonstram a ocorrência de prejuízo ao patrimônio público e de dolo específico na conduta do agente, que teria dispensado as formalidades de contratação durante um ano inteiro, o que, de fato, sepulta as teses defensivas, sobretudo a de desconhecimento da lei, tendo em vista que o paciente já estava no exercício do segundo mandato como prefeito municipal.
3. Assim, presentes os elementos que dão suporte às conclusões das instâncias antecedentes a respeito da autoria e
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da materialidade delitiva, não se vislumbra motivo para reformar as conclusões das instâncias antecedentes, inexistindo constrangimento legal a ser sanado por esta via.
4. Agravo regimental improvido.
Narra o recorrente que (eDOC 2, p. 79-101): a) foi condenado à pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de detenção, pela prática do crime tipificado no art. 89 da Lei 8.666/93; b) as provas constantes dos autos são incapazes de demonstrar o dolo específico do agente e a existência de efetivo dano ao erário, elementos imprescindíveis à configuração do delito imputado; c) a condenação do ora recorrente fundou-se em equívoco das instâncias ordinárias, que entenderam que o crime imputado é de natureza formal; d) o decreto condenatório limitou-se a observar que restou configurada a dispensa de licitação, fato que, por si só, não é apto a enquadrar a conduta praticada no tipo penal objeto da condenação.
À vista do exposto, requer a absolvição do paciente, pelo reconhecimento da atipicidade da conduta praticada.
Em 20.10.2020, indeferi o pedido liminar (eDOC 4). A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo desprovimento do recurso, em parecer assim ementado (eDOC 7):
Processo Penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Crime do art. 89 da Lei 8.666/93. Pleito que busca absolver o réu. 1. As instâncias pretéritas demonstraram que a conduta do paciente, exprefeito municipal, consistente em realizar despesas sem prévio procedimento licitatório, foi praticada com o dolo específico do delito previsto no art. 89 da Lei 8.666/93, a evidenciar improcedência do pleito que busca a absolvição. 2. Pelo desprovimento do recurso ordinário.
É o relatório. Decido .
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1. A apontada ilegalidade não pode ser aferida de pronto.
É consolidado nesta Corte o entendimento de que não se admite o reexame de fatos e provas em sede de habeas corpus, o qual é “instrumento destinado à proteção de direito líquido e certo, demonstrável de plano, que não admite dilação probatória.” ( HC 103.606, Relator (a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 21/09/2010).
Afinal, “De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é inviável a utilização do habeas corpus para se revolver o contexto fático probatório e glosar os elementos de prova que ampararam a conclusão das instâncias ordinárias.” ( HC 137695, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 10/10/2016).
No mesmo sentido: RHC 121.092/SP, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 12/5/14; HC 118.602/SP, Segunda Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 11/3/14; e o HC 111.398/SP, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 3/5/12.
Diante desse limite cognitivo, a revisão do julgado não permite incursão no quadro fático-probatório, tampouco a reconstrução da discricionariedade constitucionalmente atribuída às instâncias ordinárias.
No caso dos autos, o magistrado da causa entendeu, com base em apreciação dos dados fáticos e probatórios dos autos, que o elemento subjetivo exigido pela jurisprudência desta Corte para a caracterização do delito estava presente na conduta do recorrente, bem como que a prática delitiva resultou em efetivo prejuízo aos cofres municipais. Confira-se (eDOC 1, p. 27-32, grifei):
“(...)
Assentadas a materialidade e autoria, as quais restam induvidosas, importa analisar a alegada necessidade de efetiva configuração de prejuízo ao erário, bem como do denominado
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dolo específico, quanto aos crimes licitatórios.
Considero imprescindível consignar, para fins de excluir a tese defensiva de "ignorância da lei", que autodefesa realizada pelo réu em seu interrogatório demonstra o desprezo do agente pela coisa pública. Apesar de ter exercido a chefia do executivo em dois mandatos, o acusado informou "não saber da nada" quanto às imputações, além de "desconhecer a existência de licitação" . Consoante art. 21 do CP, a ignorância da lei é inescusável. É interessante anotar que a denúncia ministerial apontou apenas a prática de doze atos ilegais, sendo que restou apurado na instrução que no ano de 2008 não foi realizado nenhum procedimento licitatório pelo Município de Buriti, informação que vem a ser reveladora do nível de administração da coisa pública no âmbito do executivo municipal durante a gestão do imputado, que colocou a "culpa" em seus assessores e no contador. Repise-se: não foi instaurado sequer procedimento administrativo para justificar a dispensa ou inexigibilidade de procedimento licitatório, não houve publicação do contrato, absolutamente nada. A defesa do réu, por sinal, requereu como diligência prazo para apresentação dos procedimentos realizados. Em seguida, tendo em vista a inexistência deles, pugnou pelo andamento do feito, ciente da impossibilidade material de fazer surgir o inexistente.
(…)
Quanto ao exame do elemento subjetivo do tipo, no caso dos autos é mais que evidente: o réu simplesmente não realizou qualquer procedimento licitatório ou de dispensa ou inexigibilidade durante um ano inteiro, tendo sido gasto o valor de R$ 2.612.053,02 sem qualquer procedimento . Chega a ser inacreditável a conduta do réu, sendo que este valor desnatura e sepulta em definitivo a tese de desconhecimento da lei. Basta analisar os altos valores envolvidos, inclusive direcionados a apenas um credor: R$ 599.032,62 com melhorias de estrada (Construtora Bom Jardinense Ltda); R$ 23.748,60 com reformas de escola (Construtora Centro de Peritoró Ltda); R$ 487.350,70 (Construtora Oliveira Pereira Ltda); R$ 24.450,00
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com serviços gráficos; R$ 746.570,00 (Construtora Talento Ltda e Figueiredo e Rodrigues Ltda).
É certo que o objetivo da Lei 8.666/93 não seria punir o administrador desavisado, despreparado ou mal assessorado, mas sim o administrador delinquente, que o réu demonstrou ser durante o exercício examinado.
(…)
No caso, é evidente a prática criminosa, inclusive pelo fato dc a defesa não ter demonstrado sequer a ocorrência da contraprestação em relação às contratações diretas.
O réu administrou recurso público como sendo privado, com as consequências penais correlatas.
(…)”
Na mesma linha, consignou o Tribunal de Justiça Estadual (eDOC 2, p. 43-46, grifei):
“(...)
A pretensão absolutória, ao entendimento de ser atípica a conduta relativa ao crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93, ante a ausência de dolo de causar dano ao erário e do efetivo prejuízo à administração pública, não merece acolhimento.
Não se desconhece que, atualmente, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça consolidaram o entendimento segundo o qual o dolo específico de causar dano
o erário é imprescindível para a caracterização do delito em referência.
Como se sabe, a prova do elemento subjetivo específico é deveras dificultosa, de modo que a sua comprovação deve ser extraída das circunstâncias da conduta.
Dentre as finalidades preconizadas pela Lei nº 8.666/93, destaca-se em seu art. 3º "a seleção da proposta mais vantajosa para a administração", que deve considerar, certamente, os aspectos técnicos e econômicos da contratação, ou seja, buscar produtos e serviços de qualidade a menores custos. Já o art. 2º, por sua vez, deixa claro que a licitação é condição prévia de
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toda e qualquer contratação, constituindo, pois, a regra. As exceções, como não poderiam deixar de ser, estão expressamente previstas na própria Lei nº 8.666/93.
A contratação com dispensa ou inexigibilidade indevida de licitação, quase sempre, reflete a intenção específica do gestor público em causar prejuízo ao erário (ou, pelo menos, assumir o risco de fazê-lo), na medida em que a escolha direcionada permitirá que o contratado pratique preços mais elevados do produto ou serviço a ser prestado, ou então, o faça com propostas aquém dos valores praticados no mercado, o que implicará, em última análise, prejuízos à própria coletividade, destinatária do serviço ou produto de péssima qualidade.
Na espécie, conforme apurou-se, o Apelante, então Prefeito do Município de Buriti/MA, por 12 (doze) vezes, efetuou despesas com o dinheiro público, sem o devido processo licitatório e sem processo formal de dispensa e/ou inexigibilidade de licitação, totalizando a vultuosa quantia de R$ 2.612.053,02 (dois milhões, seiscentos e doze mil, cinquenta e três reais e dois centavos) .
Como visto, as irregularidades consistiram nas seguintes aquisições/contratações: a) R$ 242.458,52 com combustível (fornecedor: A. Batista da Silva); b) R$ 226.648,80 com gêneros alimentícios (fornecedores: Marlene Lima Cardoso e F. K. Ferreira - ME); c) R$ 181.288,13 com material de consumo (fornecedores: A. Paula da Silva e outros); d) R$ 33.739,25 com material de expediente (fornecedores: BGR de Souza Comércio Papelaria Sol e Mar e outros); e) R$ 17.266,00 com material de limpeza (fornecedor: Comercial Ferroplasma Ltda); f) R$ 11.172,40 com materiais diversos (fornecedores: Colmaq Ad. Araújo e Cia Ltda e outros); g) R$ 18.328,00 com material permanente (fornecedores: Comercial Ferroplasma Ltda e outros); h) R$ 599.032,62 com melhorias de estrada (contratada: Construtora Bom Jardinense Ltda); i) R$ 23.748,60 com reformas de escola (contratada: Construtora Centro de Peritoró Ltda); j) R$ 487.350,70 com serviço de limpeza pública (contratada: Construtora Oliveira Pereira Ltda); 1) R$ 24.450,00 com serviços
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gráficos (contratada: R.J.N Martins/Gráfica e Editora Martins; m) R$ 746.570,00 com construção de sistema de abastecimento de água (contratada: Construtora Talento Ltda e Figueiredo e Rodrigues Ltda).
Em relação às despesas irregulares listadas acima, nem na Corte de Contas, tampouco neste processo, FRANCISCO EVANDRO FREITAS COSTA MOURÃO obteve êxito em, idoneamente, justificá-las, preocupando-se mais em lançar a responsabilidade ao contador contratado.
Em juízo (mídia DVD de fls. 286), o Apelante admite que houve as contratações e que assinava cheques nominais para pagamentos, confiando no que o contador de nome Jurandir lhe passava, chegando a afirmar que seu erro foi nunca ter pedido a licitação para ver, bem como que se arrependia de ter colocado profissionais que não fizeram o papel deles.
A tese do Apelante, de que não sabia de nada, pois confiava no que o contador e o Secretário de Administração lhe passavam, não se consubstancia em justificativa idônea a afastar o dolo e, por conseguinte, a tipicidade penal.
Ora, além de o desconhecimento da lei ser inescusável (art. 21 do CP), verifica-se que FRANCISCO EVANDRO FREITAS COSTA MOURÃO, em 2008, já estava em seu segundo mandato no comando do executivo (eleito Prefeito desde 2004 e reeleito em 2008), tempo mais que suficiente para ter ciência e consciência dos atos de gestão pública , e, portanto, do dever de observar as diretrizes da Lei de Licitações, mesmo porque, é corriqueira a necessidade de contratação de serviços e aquisição de produtos na esfera pública.
Além disso, a acusação apontou a prática de doze atos ilegais, sendo que os autos dão conta de que no ano de 2008 não foi realizado nenhum procedimento licitatório pelo Município de Buriti , muito menos procedimento administrativo para justificar a dispensa ou inexigibilidade de licitação, evidenciando verdadeiro descaso com o erário.
Vale destacar, como bem apontado na sentença (fl. 316),
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que "A defesa do réu, por sinal, requereu como diligência prazo para apresentação dos procedimentos realizados. Em seguida, tendo em vista a inexistência deles, pugnou pelo andamento do feito, ciente da impossibilidade material de fazer surgir o inexistente.". É o que se depreende da fl. 284 (requerimento constante do Termo de Audiência) e da fl. 288 (petição informando a não localização dos processos licitatórios).
(…)
E nem se diga que os papéis apresentados apenas em grau de recurso, às fls. 350-354 (e os insertos às fls. 346-347), podem ser considerados como provas da realização de licitação, uma vez que são meras referências supostamente extraídas da internet, destituídas de qualquer documentação a lhes conferir respaldo e sem submissão ao crivo técnico do TCE/MA, consistindo em simples menções a supostas resenhas de contratos, avisos de licitação e convênios, que não trazem segurança probatória alguma, sendo imprestáveis ao caso.
Dessa forma, a quantidade de contratações irregulares, assim como o descaso com o procedimento a ser utilizado , deixam claro que o Apelante, na condição de Prefeito de Buriti/MA, no exercício financeiro de 2008, não somente tinha plena consciência das irregularidades como, efetivamente, causou lesão aos cofres públicos, com dispêndio de considerável quantia em aquisições de produtos e serviços (R$ 2.612.053,02) , sem uma prévia análise das propostas verdadeiramente mais vantajosas à Administração Pública, a ensejar multa pela Corte de Contas pelo dano ao erário.
Nesse prisma, a ausência de justificativa idônea dessas contratações, à margem do processo licitatório, evidencia que o Alcaide, deliberadamente, onerou o tesouro público , na medida em que poderia fazê-lo na estrita observância dos princípios da legalidade e impessoalidade, escolhendo o licitante que apresentasse a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em termos técnicos e financeiros.
Cumpre anotar que quando o gestor resolve escapar do processo licitatório, tal fuga já causa enorme prejuízo ao erário,
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uma vez que não há certeza de que o que foi adquirido era preciso ou o foi na quantidade e qualidade necessárias ao serviço. E se não há licitação, surge a intenção clara do gestor em beneficiar determinada pessoa ou ente, alijando os demais fornecedores da oportunidade de concorrer em igualdade de condições.
Portanto, a inexistência de procedimento licitatório prévio às aludidas contratações impossibilita, aprioristicamente, a pesquisa de propostas mais vantajosas, acarretando, invariavelmente, contratações mais onerosas para a Administração Pública, o que evidencia nítida intenção de lesar os cofres públicos, ou, no mínimo, assumir o risco de fazê-lo.
(…)”
Por demandar reexame de fatos e provas, é inviável o acolhimento da pretensão deduzida pelo impetrante por meio do presente recurso ordinário em habeas corpus quanto ao particular.
2. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso ordinário em habeas corpus , com fulcro no art. 21, § 1º, do RISTF.
Publique-se. Intime-se.
Brasília, 12 de julho de 2021.
Ministro EDSON FACHIN
Relator
Documento assinado digitalmente
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