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20 de Abril de 2024
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    DUDH: Ministra Cármen Lúcia fala do direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal

    há 15 anos

    Em comentário feito ao artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal, assim se pronunciou a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha

    Artigo 3º

    Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal

    Contou, certa vez, um poeta que ficara toda uma noite a buscar palavras para dizer a vida. No final da madrugada insone, na qual não lhe tinha vindo à pena o dito mais perfeito, uma pequena formiga atravessou a sua página em branco. Com o seu olhar indormido, o poeta observou a passagem livre do inseto até que ele sumisse nas bordas da folha de papel. Então, ele largou a caneta e buscou o sono: a vida tinha se mostrado em movimento melhor que qualquer palavra sua pudera jamais descrever.

    O direito é como o poeta que observa e age sobre a realidade, como se fora a sua folha de papel. Mas o direito não apenas observa e cuida da vida, mas faz-se debruçar sobre a dor do viver. Se a vida não tivesse dores, se a indignidade não lhe tocasse a face, o ventre, se não lhe atingisse a alma, nem seria preciso o direito. Se viver não machucasse algumas vidas (quem sabe todas de uma ou de outra forma...), se a história do homem pudesse sempre atravessar sem percalços o caminhar do homem, o direito não se teria institucionalizado. Não se constroem diques ou barragens para as águas que correm segundo o destino natural das águas servindo às suas margens e aos que delas se servem. Mas o destino dos homens em sua experiência com os outros não se faz sempre (ou quase nunca) como aquela travessia breve e calma sobre a qual pousou o poeta seu olhar noturno. Antes, ele se faz com paixões sobre as quais se litigam, com interesses que se entrechocam, com buscas que têm o mesmo objeto e não comportam senão o toque de uma mão ou de mãos entrecruzadas. Por isso, a vida é o objeto do direito maior do homem: aquele do qual e para o qual todos os outros direitos se constroem, se somam e em torno do qual todos os cuidados jurídicos se somam.

    A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Às vezes nem chega a envelhecer. A mão de parca toca a face do destino antes da chegada das rugas. O direito é o instrumento criado pelo homem para que o curso dessa jornada seja tão natural que a caminhada não pese como um gravoso encargo, mas se cumpra como um benfazejo milagre.

    Por isso se declara, no direito dos direitos, que Todo homem tem direito à vida. Mas não a qualquer existência, não a mera sobrevivência, definitivamente não a qualquer sobreexistência.

    O direito à vida não é só a garantia da batida de um coração ou uma doce ilusão. É o direito a realizar o eterno projeto humano de ser dignamente feliz. É a entrega a si mesmo no espaço de todos e o encontro mais profundo de cada um com todos os outros convertidos em fraternos elos da experiência transcendente e transposta no movimento entrecruzado de mãos que se conjugam para a superação de si mesmo e para a construção permanente do viver mais justo com o outro.

    O direito à vida guarda e resguarda a oportunidade justa de o homem tornar-se inteiro em sua individualidade pela certeza da solidariedade de todos. Nele se contém a segurança da dignidade, posta a florescer na experiência plural. O direito à vida concede ao homem não a certeza da vida, que a vida é sempre uma incerteza, mas a certeza de que a solidão do seu ser pode converter-se na solidariedade do permanente tornar-se.

    A vida é da natureza; a vida digna, transformada pela construção de cada dia, é da razão essencial do homem. A vida põe-se pela natureza e impõe-se pela mão do homem. Por isso o direito à vida é obra construída com todos; é a arte de fazer brotar na realidade o que é próprio e inato ao homem, mas que jaz apenas semente no reconhecimento da palavra-norma declarada.

    Direito à vida não é retórica ou sugestão, senão que contingência do que se dá a ser para que convivam dignamente todas as pessoas. Esse direito está na base e na essência de todos os direitos, pois o próprio sistema de normas jurídicas mais não é que uma criação do homem para tornar facilitada, aperfeiçoada, fraternizada a convivência em praça pública. O direito é isto e só isto: um instrumento político criado pelo homem para assegurar-se uma vida digna e melhor com todos. Não fossem as indignidades que se têm nos limites humanos naturais e naqueles que se põem pelo passo entrecruzado no caminho, desnecessários seriam os traçados normativos para limitar andanças que machucam e coartam o mais breve atalho para o bem viver. O sistema de direito é, assim, tão-somente um desdobramento do direito à vida; uma construção que se elabora para que o homem se projete no momento breve de uma existência e realize a sua vocação para a eternidade.

    Nenhum direito é mais proximamente marcado pela temática da justiça concretamente realizável que o da vida. Até porque o direito é uma manifestação da vida. Não há direito para a morte, nem ou um direito dos mortos. O que se protege quando se fala em morte ou na segurança do corpo para depois da morte é uma projeção do direito à vida, a proteção da dignidade e da integridade, mesmo quando não há mais a resposta material do viver.

    A vida com justiça é que é o objeto do direito. E a vida é justa quando garantida a dignidade da experiência humana. Vida com fome não é justa nem digna. Vida com dor também não, seja qualquer a espécie de dor que acometa o homem. A vida tocada pelo medo e pela angústia é experiência malsã, mais ainda se o desequilíbrio vem de fora.

    O direito à vida calça o homem com a esperança de que a experiência política (na pólis) é segura, mesmo que o incerto se traduza em sua certeza maior, quando não única, que perpassa todo o incrível ensaio humano. Essa esperança põe-se quanto à própria condição da existência e traduz-se em segurança formal quando o conteúdo e o continente desse direito se positivam e dão ao homem o saber possível de como prosseguir em sua jornada humana. Se a insegurança assinala o turbilhão que a cada qual é dado viver, a certeza da e na convivência torna-o mais generoso quando o direito se oferece como esteio garantidor da presença respeitosa, digna e solidária do outro.

    A vida é um fazer eterno do homem, o qual não se dá à eternidade. Neste não ser eterno o homem busca, apesar de todos os limites, não se entregar e não se dar a morrer. O direito à vida é uma construção permanente para a perpetuação do homem que busca a sua não-morte. Por isso, a vida não é um dado cultural que se converte em direito, Mas o conteúdo do direito à vida é fruto de cada cultura e de cada povo em cada momento histórico. Daí porque a Constituição deixa em aberto a dimensão desse direito fundamental e do qual e para o qual todos os outros se voltam. O conteúdo desse direito é, pois, dinamizado segundo o conceito de justiça havido em cada sociedade. E os conceitos mudam, como a vida muda.

    A valorização do direito à vida digna preserva as duas faces do homem: a do indivíduo e a do ser político; a do ser em si e a do ser com o outro. O homem é inteiro em sua dimensão plural e faz-se único em sua condição social. Igual em sua humanidade, o homem desiguala-se, singulariza-se em sua individualidade. E o direito à vida contempla a unidade e a pluralidade do homem, feito persona em todas as suas presenças e até mesmo em suas ausências. Assim, a preservação jurídica da intimidade é uma projeção do direito à vida, contido seu universo singular em sua alma não partilhável com os outros; o homem preserva-se em sua individualidade para garantir-se em sua socialidade. A persona política apresenta o homem em sua qualidade fraterna do que convive para viver, do que se une para se desenvolver, do que se funde ao outro para se preservar íntegro. E certo que a praça revela tanto o abraço quanto o açoite, tanto o alento quanto o desamparo daquele que se vê só junto com os outros. O homem não é só o amigo; pior, é também o inimigo, o que falseia e trai a sua própria imagem oferecida ao outro. O direito é o instrumento da fraternização racional e rigorosa.

    O direito à vida é a substância em torno da qual todos os direitos se conjugam, se desdobram, se somam para que o sistema fique mais e mais próximo da idéia concretizável de justiça social.

    Mais valeria que a vida atravessasse as páginas da Lei Maior a traduzir-se em palavras que fossem apenas a revelação da justiça. Mas quando os descaminhos não conduzirem a isso, compete ao homem transformar a lei na vida mais digna para que a convivência política seja mais fecunda e humana.

    Afinal, se a vida não atravessa a página da lei, seja possível a lei atravessar a vida política com o condão de concretizar os ideais que fazem da eternização do sonho de cada homem o seu projeto mais certo, mesmo em todas as suas incertezas.

    Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha

    * Artigo publicado na obra "50 anos da Declaração dos Direitos Humanos: conquistas e desafios" da Ordem dos Advogados do Brasil (p. 47-51, 1998).

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